Postagens

Mostrando postagens de 2020

Pirão de mãe é mais gostoso

Aos domingos minha mãe costumava cozinhar. Fazia comidas deliciosas para saciar o apetite das filhas, pelo menos de duas delas, uma é chata para comer, como diz Claude Troisgros. Lasanha, grão de bico com linguiça, bife, arroz e feijão preto, salada, bistecão com farofa e tantas outras comidas que ficaram na minha memória.  Ela tinha um ritual para cozinhar: cortava os temperos, cozinhava, arrumava a mesa, lavava toda a louça, suava e ia tomar banho, não sem antes mandar a gente sentar e comer: “Não precisa me esperar".  Quando voltava, exalava o seu cheiro de Mithus Manhã, servia a comida no prato e tacava farinha por cima. E comia suspirando, enquanto o suor ainda escorria pelo colo e se misturava com os respingos de perfume: “A gente toma banho e não para de suar", reclamava. Também pudera, remava um baita dum pirão. Tinha magia naquele pirão. Eu a assistia comendo e ficava com água na boca, com olho grande para o prato dela,  na verdade: “Tu queres um pouco?", ela ca

Maria passou na frente

Todas as vezes que ouço o povo gritando em coro durante a procissão do Círio de Nazaré, como se tivesse ensaiado: “Lá vem a corda!”, a lembrança daquela manhã de domingo vem à tona.  Era costume de minha mãe e minha tia assistir a chegada da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré no Centro Arquitetônico de Nazaré, o famoso CAN, para a celebração da missa.  Saíam de casa só para presenciar esse momento, que não é um dos mais tranquilos do Círio, mas parecia ser o mais atraente para minha família e elas insistiam nesta ideia e sempre na esperança de que achariam um “bom lugar” para ver a berlinda passar. E houve um domingo especialmente tenso. Neste dia fomos minha mãe e eu somente, e depois de atravessarmos com muita dificuldade a avenida Generalíssimo Deodoro com a Avenida Nazaré, enfrentando a correnteza da multidão que andava para frente, paramos embaixo de um telefone público próximo à esquina do cruzamento destas avenidas. Foi um lugar com menor aglomeração que minha mãe encon

Não serviam mais mingau

Alice estava relutante em sair de casa, afinal a pandemia não terminou, mas diante do último acontecimento em que soube pedir (Car@ leitor@, volte uma crônica para entender), ela marcou uma consulta com o cardiologista. Ela se consultava com o mesmo médico desde que foi diagnosticada hipertensa e isso já fazia sete anos. Apesar de o consultório estar sempre cheio, o que implicava num tempo de espera maior, eles serviam mingau de tapioca para tentar aplacar aborrecimentos de certos (im)pacientes, ou mesmo a fome, que era o caso de Alice. Funcionava com ela. Esperando acerca de uma hora pelo atendimento, Alice levou um baita susto (quase um teste para cardíaco, com a permissão do trocadilho) quando uma funcionária da clínica saudou a todos ali presentes com um bom dia bem animado, estilo programa de auditório, seguiu presumindo que estavam todos bem (pouco provável pelo fato de estarem numa clínica de cardiologia) e pediu que levantassem e fizessem uma oração para Jesus, no que foi pront

Tem que saber pedir

Passado mais de dois meses, Alice está mais adaptada ao cotidiano da quarentena. Já tem um novo horário para acordar, as nove horas da manhã, e que sua tia Margarida não soubesse. Mesmo aposentada há mais de trinta anos, continuava acordando antes do sol nascer e não via na sobrinha disposição para tal. O que é uma verdade. Mas Alice não se importava, a não ser nos dias em que Margarida liga cedo para ela, só pelo prazer de dizer: “poxa, ainda estavas dormindo?! Eu hein!”. Quase todos os dias Alice prepara o almoço. Quando não quer comer o trivial arroz, feijão (que ela aprendeu a fazer na quarentena) e bife, procura receitas na Internet . E descobriu uma página de uma chefe de cozinha que ensina receitas em uma panela só. O que dificulta, às vezes, são as receitas que levam endro, figo, alho-poró, que Alice não conhece e nunca comeu e o aplicativo de supermercado também não. Daí então ela volta para o trivial ou pede pelo delivery de comida. E quando recebe a fatura do cartão, semp

O bolo que faz chorar

“Alô, Babi, minha filha, tudo bem?”.  “Oi, tia Lourdes, tudo bem. E com a senhora?”. “Estou te ligando pra saber o que queres ganhar de aniversário”. “Oh, tia, a senhora já sabe o que quero ganhar.” No que ambas falavam juntas: “Bolo de baba!”. E caíam na gargalhada.  Este era um diálogo comum com a Maria de Lourdes Fonseca, a tia Lourdes. Todos os anos, próximo de meu aniversário ela me ligava para perguntar sobre meu presente e a resposta era sempre a mesma: bolo de baba, que se tornou então uma tradição em minhas festas de aniversário. Um bolo delicioso preparado magicamente por ela e que atravessou gerações de aniversariantes da família Fonseca.  O ritual era o mesmo: no dia da festa ela chegava carregando o bolo de baba e ainda trazia o não menos delicioso espumone, uma sobremesa gelada com três coberturas: uma de chocolate e biscoito, outra de leite condensado, basicamente, e uma terceira de clara em neve, creio eu. (Eu não sei a receita, só comia.) Meus olhos brilhavam. O bolo d

Carta para Helô e tod@s que são filh@s

Querida Helô,  Quando comecei a escrever esta carta tu ainda estavas na barriga da tua mãe.  A ideia não foi minha. Numa tarde quente de Belém, recebi uma mensagem de Mari Joyce (M.J.) (nem sei se já posso falar o nome dela...). Na mensagem ela dizia que eu devia escrever uma mensagem pra ti, em segredo, e que nunca, mas nunca poderia falar o nome dela, para não estragar a surpresa. Quem leu Harry Potter, sabe o que isso significa. Tive medo. Mas aceitei a proposta. Comecei a escrever, mas as atribulações do dia a dia, não me permitiram concluir.  A ideia de M.J. era de que todas aquelas escolhidas para a escrita da mensagem, a entregassem no dia de seu Baby Chá. Mas eu não escrevi. Logo eu, amiga uterina de sua mãe. Crescemos juntas, brincamos, nos divertimos, fomos associadas do “Clube Lagoa Azul", fomos aos shows na antiga “A Pororoca", andamos juntas da praia do Areão ao Murubira, confidenciamos amores, compartilhamos sofrimentos e momentos alegres. Logo eu...  Cheguei a

Sintonia

Escute essa canção que é pra tocar no rádio, no rádio do seu coração. Você me sintoniza e a gente então se liga nesta estação... Esta música vez ou outra irrompe na minha mente. Há duas semanas aconteceu. Corri pra pegar o celular e colocar para tocá-la no Spotify . Ela tem em si uma potência pra mim, me faz chorar um choro profundo e triste toda vez que a escuto e dessa vez não foi diferente.  Ela me remete a algum tempo na minha infância, bem tenra. Eu não tenho certeza quem ouvia essa música, mas lembro muito de Mãe Lucila ao escutá-la. Eu nem poderia me lembrar, só conheço Mãe Lucila pela memória alheia, quando minha mãe Eugênia ou tia Marga contam alguma história sobre ela, sempre relacionada aos cuidados que ela dispensou a todos da família Fonseca e ao seu perfume de Alfazema.  Eu deveria ter 4 anos de idade quando ela morreu. Mas lembro bem da minha revolta com sua partida e talvez essa seja minha primeira memória de infância. Eu olhava por uma janela de rótulas brancas q

Sete igrejas

Desde a infância eu e minhas irmãs costumávamos acompanhar nossa mãe na peregrinação as sete igrejas, toda sexta-feira santa que antecede o domingo de Páscoa. A única coisa certa nessa tradição era o fato de a realizarmos, mas como a fazíamos dependia de nossa disposição e boa (as vezes má) vontade.  Acordar cedo sempre foi um problema na família Fonseca, a partir da geração de mamãe. Então sempre planejávamos acordar sete horas da manhã e acordávamos às nove. Um corre corre para quem tomava banho primeiro, depois se arrumar, tomar café e ir para a parada esperar o ônibus. Em dias normais, o Cremação tinha uma frota reduzida, imagina em dia de feriado. Então mais perda de tempo, esperando o busão.  Nós visitávamos pelo menos três igrejas: Sé, Santo Alexandre e Carmo. As demais dependiam do sol, sede e fome.  Quando chegávamos a Catedral, o ritual era sentar, rezar, admirar as pinturas que retratam os santos (acho magnífica a de Santa Bárbara) e acender velas na lateral da igreja

Era pra ser mentira, mas é verdade

Alice parece não acreditar que já esteja há 15 dias sem poder sair de casa (o que considera um privilégio, quando sabe que muitas pessoas não tem a opção de parar de trabalhar neste momento), como parte das medidas de combate ao novo Coronavírus, anunciada pelo governo do estado.  “A coisa está mesmo muito grave lá fora", dizia ela depois de assistir as notícias sobre a incidência da doença na Itália. Ficou muito chocada e comovida com a fileira de caminhões levando os mortos para fora da cidade de Bérgamo, em sua maioria idosos, sem direito a velório e a presença dos familiares neste momento de despedida. Pensa em sua mãe e tia, sente uma tristeza lancinante. Já faz 15 dias que não as vê e  algum tempo que chora baixinho todos os dias. Tem sido inevitável para ela lembrar de Bill Murray em “Feitiço do Tempo”, quando então ri sozinha, em um dos raros momentos de distração da tensão cotidiana das últimas semanas. O filme é um clássico e um de seus favoritos e tem tudo a ver co

Bem te vi ou meu nome é Leonardo!

Faz parte da crença popular que o canto do bem te vi anuncia uma gravidez. Se a mulher está nesta expectativa, aquele assobio traz uma animação instantânea,  com pulinhos e palmas de alegria, quiçá. Caso contrário, isto é,  a mulher não queira engravidar, a reação também incorpora a crendice do povo: inicia-se uma correria em busca de um objeto de madeira, para que ela possa bater três vezes, enquanto fala: “isola", “isola", “isola". Chega-se a espantar o pobre bichinho, dando tapas no ar. Mas ele está longe, mal percebe aquela aflição, equilibrando-se na fiação que liga os postes de rua, enquanto entoa seu canto rotineiro.  Carol já estava há cinco dias de quarentena em casa. Com a pandemia do coronavírus, as aulas em escolas públicas foram suspensas. Ela, professora em escola de tempo integral, já se sentia aflita com a nova situação. Com uma rotina toda organizada, agora se via fazendo coisas aleatórias: massagem capilar e lavando as mãos com água e sabão; lendo e