Sintonia

Escute essa canção que é pra tocar no rádio, no rádio do seu coração. Você me sintoniza e a gente então se liga nesta estação... Esta música vez ou outra irrompe na minha mente. Há duas semanas aconteceu. Corri pra pegar o celular e colocar para tocá-la no Spotify. Ela tem em si uma potência pra mim, me faz chorar um choro profundo e triste toda vez que a escuto e dessa vez não foi diferente. 
Ela me remete a algum tempo na minha infância, bem tenra. Eu não tenho certeza quem ouvia essa música, mas lembro muito de Mãe Lucila ao escutá-la. Eu nem poderia me lembrar, só conheço Mãe Lucila pela memória alheia, quando minha mãe Eugênia ou tia Marga contam alguma história sobre ela, sempre relacionada aos cuidados que ela dispensou a todos da família Fonseca e ao seu perfume de Alfazema. 
Eu deveria ter 4 anos de idade quando ela morreu. Mas lembro bem da minha revolta com sua partida e talvez essa seja minha primeira memória de infância. Eu olhava por uma janela de rótulas brancas que havia no quarto de casa e falava muito seriamente com “papai do céu”: “por que o Senhor levou a Mãe Lucila?”. Ao que minha tia respondia que ela havia ido para lá cuidar das criancinhas. E eu questionava o porquê Dele não ter levado as próprias mães destas crianças para cuidarem delas?! E essa pergunta ficava sem resposta.
Coincidência ou não, na mesma semana em que recordei de “Sintonia” surgiu uma foto de Mãe Lucila em um grupo de Whatsapp que participo, amigos de infância do velho clube “Lagoa Azul". Revirando álbuns de fotografias antigos, um deles enviou fotos de quando os membros do clube fizeram uma apresentação de Natal, nos anos finais da década de 80. Não lembro que música nós cantamos, talvez algum clássico natalino, e em minha roupa estava pregada a letra A da primeira sílaba de Natal. E eu parecia feliz com issso.
Em meio a plateia, formada por nossos familiares, lá estava ela: uma mulher magra, mãos trançadas sobre as coxas e capturada pela fotografia em seu olhar atento e tímido para o número encenado pelas crianças. Mesmo sem lembrar dela fisicamente, tive certeza que era ela no momento em que olhei aquela imagem. Logo perguntei a minha irmã, que respondeu: “É a Mãe Lucila...”. E deu até para sentir seu suspiro de emoção ao ler a mensagem de texto. 
Ontem ela veio de novo a minha memória. Ela e “Sintonia", quando soube da morte de Moraes Moreira. Corri pra pegar o celular e colocar pra tocá-la no Spotify. Estava entre as tocadas recentemente. Chorei de novo. Ocorreu-me uma nova lembrança, talvez não seja verídica:  vejo Mãe Lucila atravessando o quintal em direção a cozinha de casa. Banho tomado, cabelo molhado, algum talco no pescoço, exalando seu perfume, um sorriso contido e um olhar acolhedor. Liga o rádio e aumenta o seu volume. São 17 horas e é hora do café da tarde. 

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