Maria passou na frente

Todas as vezes que ouço o povo gritando em coro durante a procissão do Círio de Nazaré, como se tivesse ensaiado: “Lá vem a corda!”, a lembrança daquela manhã de domingo vem à tona. 
Era costume de minha mãe e minha tia assistir a chegada da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré no Centro Arquitetônico de Nazaré, o famoso CAN, para a celebração da missa. 
Saíam de casa só para presenciar esse momento, que não é um dos mais tranquilos do Círio, mas parecia ser o mais atraente para minha família e elas insistiam nesta ideia e sempre na esperança de que achariam um “bom lugar” para ver a berlinda passar. E houve um domingo especialmente tenso.
Neste dia fomos minha mãe e eu somente, e depois de atravessarmos com muita dificuldade a avenida Generalíssimo Deodoro com a Avenida Nazaré, enfrentando a correnteza da multidão que andava para frente, paramos embaixo de um telefone público próximo à esquina do cruzamento destas avenidas. Foi um lugar com menor aglomeração que minha mãe encontrou e com sombra para se proteger do sol do meio-dia em Belém do Pará. 
Mamãe dizia para me acalmar, que ficaríamos bem naquele lugar, arrumando os meus cabelos arrepiados e suados grudados na testa, depois de passarmos por todas aquelas pessoas entre pedidos de licença e desculpa, licença e desculpa, estou com criança, estou com criança.
Eu só tenho lembranças dos pés das pessoas até a altura de suas cinturas que era até onde minha vista alcançava, aos 7 anos de idade. Não conseguia olhar para cima, o espaço era pouco.
Paradas ali não muito tempo, ouvimos o povo gritar: “Lá vem a corda!”.  E aquele lugar que parecia tranquilo, começou a ficar cheio de gente. Eu não entendia muito bem o que acontecia nesta hora. Mas quando a corda vem sendo puxada pelos promesseiros, empurra todos que estão em seu caminho, abrindo com uma força incontrolável uma passagem para estes devotos, enquanto as demais pessoas vão se ajeitando pelas calçadas, imprensando os que estão apenas parados, que era o nosso caso. 
Minha mãe pensou em nos tirar dali, segurou firme em minha mão, mas não deu tempo de sair e de repente já estávamos cercadas de gente e ficamos presas debaixo daquele orelhão que começou a balançar. Balançou uma vez fracamente, balançou novamente um pouco mais forte e foi balançado mais e mais. Nesta hora minha mãe já gritava: "Tem criança aqui! Tem criança aqui!". Ao mesmo tempo em que segurava na cabine telefônica como se pudesse conter sua queda. De repente surge uma mão me segurando forte, me agarra por baixo dos braços e me puxa dali, me levantando no ar. Vi muitas cabeças neste breve sobrevoo.
Eu lembro de ter resistido aquele ato e gritava: “Mãe! Mãe! Eu quero minha mãe!”. E de repente já estava no chão de novo, no meio da rua, numa parte bem menos cheia de pessoas, e olhei que o local onde estávamos anteriormente, passando sufoco, era muito próximo dali.
Eu consegui olhar para o chão pela primeira vez e vi o asfalto. E vi também um par de pés calçados numa bota preta e uma calça bege, aliás a roupa era toda bege. Usava um boné, tinha alguma coisa escrita no bolso da camisa. Minha mãe veio correndo logo em seguida, ajeitando a blusa torta e o cabelo arrepiado, colocando a bolsa no lugar e enxugando o suor. Lembro do seu abraço forte e de dizer repetidas vezes: “Muito obrigada! Muito obrigada! Muito obrigada!” 
Quando olhei pra cima, o sol estava forte, franzi o olho, olhei para aquele homem, mas não vi seu rosto, estava na sombra. Ele disse alguma coisa para minha mãe, do tipo para ter cuidado com uma criança pequena em meio aquela aglomeração. E depois foi embora, de volta para a multidão. 
Neste ínterim, a corda passou, a berlinda passou e nem vimos... e aquela multidão embolada naquela esquina ia aos poucos se dispersando. Mamãe me carregou no colo, encostei meu queixo em seu ombro e suspiramos juntas. Deu pra ver o orelhão na esquina: todo torto de tanto balançar. Mas não caiu. Logo adiante me colocou no chão, me ofereceu um picolé e segurou firme em minha mão novamente. 
Maria passou na frente. 

Comentários

  1. Fiquei aflita só em ler este relato, meu coração acelerou, multidão me dá pânico, não gosto. Que bom que no final ficou tudo bem, graças aos céus que essas pessoas sempre estão lá no meio do sufoco pra ajudar 🙌🏾. Acho que são enviados de Deus e de Maria para conter um pouco a falta de prudência do povo que quer ver a berlinda de perto, mesmo sabendo que é missão impossível no dia do Círio.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tem uns anjos infiltrados no Círio a mando de Nossa Senhora. 😇

      Excluir
  2. Foi seu Anjo da Guarda que chamou Maria pra passar na frente e apareceu um arcanjo forte em forma de um militar.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Autosabotagem

4 igrejas + 3 exposições = nossa própria tradição

Como vivem os idiotas ou até quando?