Era pra ser mentira, mas é verdade

Alice parece não acreditar que já esteja há 15 dias sem poder sair de casa (o que considera um privilégio, quando sabe que muitas pessoas não tem a opção de parar de trabalhar neste momento), como parte das medidas de combate ao novo Coronavírus, anunciada pelo governo do estado. 
“A coisa está mesmo muito grave lá fora", dizia ela depois de assistir as notícias sobre a incidência da doença na Itália. Ficou muito chocada e comovida com a fileira de caminhões levando os mortos para fora da cidade de Bérgamo, em sua maioria idosos, sem direito a velório e a presença dos familiares neste momento de despedida. Pensa em sua mãe e tia, sente uma tristeza lancinante. Já faz 15 dias que não as vê e algum tempo que chora baixinho todos os dias.
Tem sido inevitável para ela lembrar de Bill Murray em “Feitiço do Tempo”, quando então ri sozinha, em um dos raros momentos de distração da tensão cotidiana das últimas semanas. O filme é um clássico e um de seus favoritos e tem tudo a ver com que Alice e bilhões de pessoas estão vivendo neste momento de isolamento social, quando parece estarmos vivendo o mesmo dia todos os dias.
O ator interpreta um metereologista de um telejornal chamado Phill. Comportando-se sempre de maneira soberba e descrente da vida, despreza seus colegas de profissão e a todos com quem cruza pelo caminho. Como punição e/ou aprendizagem fica preso no “Dia da Marmota”, um evento tradicional de uma cidade no estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, que ocorria todo início de inverno, na qual uma marmota, num ritual já estabelecido há anos, é a responsável por indicar por quanto tempo durará o inverno. E fazia quatro anos que Phill cobria o tal evento. 
Preso no tempo, Phill, revive incontáveis vezes o Dia da Marmota. As primeiras reações são de incredulidade, passando pela revolta, quando pratica vários atos inconsequentes, sabendo que não haverá punição, como as várias  tentativas de sequestro ou o próprio sequestro da pobre da marmota, até chegar a fase da inconformidade, quando tenta o suicídio outras tantas vezes, mas sempre acorda no quarto do hotel ao som da música I got you Babe de Sonny e Cher. 
Porém, Phill muda de atitude e para de desafiar o tempo, quando então começa a fazer coisas na tentativa de tornar-se uma pessoa melhor. Frequenta aulas de piano, aprende a fazer esculturas no gelo, falar francês e tenta conquistar sua colega de trabalho Rita, interprerada por Andie Macdowell, por quem realmente se apaixona depois de tantas investidas, ao conhecê-la mais profundamente. 
Para surpresa de Phill (e do espectador, que torce para que o dia mude, a cada novo sinal de melhora no caráter de Phill), ele finalmente deixa de viver o Dia da Marmota, ao se tornar um ser humano mais gentil, educado e atencioso e consegue conquistar o amor de Rita.
Alice pensa estar vivendo seu próprio Dia da Marmota. Acorda, toma seu remédio para hipotireoidismo, toma banho, escova os dentes, toma café e seu remédio para hipertensão. Liga a TV e assiste o noticiário, quando se atualiza sobre os números de infectados e mortos pela doença, que crescem a cada dia no Brasil. Consulta o e-mail, quando vê que tem mais uma promoção de aspirador em pó nas Americanas (maldita hora que pesquisou preços!). Tira a carne congelada do freezer para preparar para o almoço e lava a louça. Varre a casa, passa pano, limpa o banheiro, dá ração para os gatos e cantarola: “todo dia ela faz tudo sempre igual...”. Prepara o almoço, põe a mesa, almoça. Toma banho, assiste a mais notícias, quando os números sobre a doença mudam de novo e cantarola: “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...”. Desliga a TV, tenta ler um livro, quando então cai no sono, e não sabe mais se de cansaço, de preguiça ou tédio. Acorda, faz um lanche da tarde, assiste mais notícias e sua preocupação aumenta, quando falam em pessoas consideradas como grupo de risco, ou quando os jovens que estão sendo acometidos pela doença e conseguem sobreviver, afirmam que ela está longe de ser um “resfriadinho” ou uma “gripezinha” e cantarola: “inútil, a gente somos inútil...”. Anoitece. Alice toma seu tradicional café com leite e pão e já come por comer, nem sente mais prazer. Toma banho, deita na cama e volta a ler o livro. Fecha o livro, rola na cama e cantarola: “Tempo, tempo mano velho, falta um tanto ainda eu sei pra você correr macio...”. Chora baixinho e adormece.
Amanhece. Alice nem sabe mais que dia é hoje. Procura um calendário: 1 de abril. “Era para ser mentira, mas é verdade”. Toma seu remédio para hipotireoidismo e começa tudo de novo... 


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