Não serviam mais mingau

Alice estava relutante em sair de casa, afinal a pandemia não terminou, mas diante do último acontecimento em que soube pedir (Car@ leitor@, volte uma crônica para entender), ela marcou uma consulta com o cardiologista.

Ela se consultava com o mesmo médico desde que foi diagnosticada hipertensa e isso já fazia sete anos. Apesar de o consultório estar sempre cheio, o que implicava num tempo de espera maior, eles serviam mingau de tapioca para tentar aplacar aborrecimentos de certos (im)pacientes, ou mesmo a fome, que era o caso de Alice. Funcionava com ela.

Esperando acerca de uma hora pelo atendimento, Alice levou um baita susto (quase um teste para cardíaco, com a permissão do trocadilho) quando uma funcionária da clínica saudou a todos ali presentes com um bom dia bem animado, estilo programa de auditório, seguiu presumindo que estavam todos bem (pouco provável pelo fato de estarem numa clínica de cardiologia) e pediu que levantassem e fizessem uma oração para Jesus, no que foi prontamente atendida por todos, menos por Alice, que não teve tempo de se recobrar do susto e estava agora incrédula com a cena.

Enquanto a pastora, quer dizer, a funcionária rezava: “Senhor Jesus, estamos aqui hoje te agradecendo por mais este dia...”, Alice olhava ao redor e pensava o quão incrivelmente cristão é o país (ou aquelas pessoas eram facilmente persuadidas), com todos ali em pé, olhos fechados, palmas das mãos viradas para cima, rezando para Jesus, e que o princípio da laicidade segue desconhecido naquela clínica que, naquele momento, mais parecia um local de culto.

Enquanto a oração, prece, como queiram chamar, corria solta no salão: “[...] se você tem saúde, agradeça a Jesus, se você tem dívidas, agradeça a Jesus, se você tem doença, agradeça a Jesus, se você tem como pagar suas dívidas, agradeça a Jesus...”, duas mulheres ao lado de Alice ficavam olhando pra ela de rabo de olho, por motivos diferentes.

A que estava ao lado direito, tinha um olhar reprovador e com seus mais de 1,70m de altura, ela parecia bem mais intimidadora, pois Alice tinha que olhá-la de baixo para cima em seu protesto sentada (ou heresia, dependendo do ponto de vista), em defesa do estado laico. A que estava ao lado esquerdo, também olhava para Alice e ao mesmo tempo olhava para a atendente, que rezava firmemente, com os olhos bem cerrados, balançando positivamente a cabeça a cada Jesus entoado.

Enquanto a funcionária agora rezava o Pai Nosso: “O Pão Nosso de cada dia nos dai hoje...”, os pacientes que estavam sendo atendidos, saíram do consultório e a mulher do lado esquerdo de Alice não contou conversa e foi em direção a atendente, cutucou seu ombro e disse: “eles já saíram, pode chamar o próximo paciente”, na esperança de fosse ela, no que recebeu um olhar fulminante e um sonoro: “eu sei, aguarde!”, fechando os olhos novamente e voltando para a oração. E Alice viu que que aquela mulher só levantou durante a oração por vergonha de fazer diferente e o olhar que lançava para Alice era, na verdade, um pedido de ajuda.

Antes de ir embora, a funcionária pediu ainda “uma salva de palmas para Jesus!”, no que foi prontamente atendida: clap clap clap clap clap. Não demorou muito, Alice ouviu, agora mais distante, novos clap clap clap clap clap, sinal de que foi pedir oração para Jesus em outra parte da clínica. Enquanto a atendente chamava o próximo paciente, que não era nem Alice nem a mulher do lado esquerdo, Alice continuava perplexa com a situação que havia testemunhado e pensou que dali em diante procuraria outro cardiologista, afinal ali, não serviam mais mingau.


Comentários

  1. Há tempos não lia os causos da Alice. Acho q vou demorar pra me atualizar.
    Contudo espero mais mingaus e menos oraçoes aglomerativas.
    Att. Doug

    ;)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Legal, Doug! Volte mais por aqui. Alice está vivendo intensamente está quarentena.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Autosabotagem

4 igrejas + 3 exposições = nossa própria tradição

Como vivem os idiotas ou até quando?