Bem te vi ou meu nome é Leonardo!

Faz parte da crença popular que o canto do bem te vi anuncia uma gravidez. Se a mulher está nesta expectativa, aquele assobio traz uma animação instantânea,  com pulinhos e palmas de alegria, quiçá. Caso contrário, isto é,  a mulher não queira engravidar, a reação também incorpora a crendice do povo: inicia-se uma correria em busca de um objeto de madeira, para que ela possa bater três vezes, enquanto fala: “isola", “isola", “isola". Chega-se a espantar o pobre bichinho, dando tapas no ar. Mas ele está longe, mal percebe aquela aflição, equilibrando-se na fiação que liga os postes de rua, enquanto entoa seu canto rotineiro. 
Carol já estava há cinco dias de quarentena em casa. Com a pandemia do coronavírus, as aulas em escolas públicas foram suspensas. Ela, professora em escola de tempo integral, já se sentia aflita com a nova situação. Com uma rotina toda organizada, agora se via fazendo coisas aleatórias: massagem capilar e lavando as mãos com água e sabão; lendo e passando álcool em gel nas mãos;  assistindo séries e borrifando álcool 70% no controle remoto e celular;  tomando seu café com leite e tapioca e depois lavando a louça (quando aproveitava e lavava as mãos novamente); pensando na próxima tatuagem (mesmo sem saber quando poderá fazê-la), enquanto passava álcool em gel nas maçanetas das portas; elaborando provas (mesmo sem saber quando ocorrerão) e limpando o teclado do notebook, publicando stories ou histories (nunca sabia a pronúncia correta) e espirrando no braço. 
Naquele fim de tarde, o canto do bem te vi chamou sua atenção, e tornou-se mais uma tarefa dentro da sua nova rotina aleatória: passou a esperar todos os dias aquele pássaro pela janela do quarto com grades.
“Bem te vi”, “bem te vi", “bem te vi", gritava Carol pela janela. Não demorava muito, o pássaro fazia seu pouso na fiação e logo começava a entoar seu canto. Carol não pensava em gravidez e nem corria mais para a cozinha em busca da tábua de carne, como costumava fazer. Passou a estabelecer uma ligação com aquele pássaro, quando assobiava de sua janela e esperava pela resposta de  Bernardo (sim, ela havia nomeado o bem te vi de Bernardo. Tinha cara de Bernardo, segundo ela), quando então ele cantava mais alto e forte.
Esse momento durava cerca dez minutos, quando então  Bernardo alçava vôo e ia embora. Carol considerava a partida pura ironia, pois sentia inveja daquela liberdade e sempre dizia: “parece que o jogo virou, hein Bernardo?!” e caía na gargalhada, rindo de nervosa talvez, na esperança daquela situação passar logo. Bernardo, por sua vez, partia sempre aborrecido e dizia: “meu nome é Leonardo! Eu canto todos os dias e ela não aprendeu ainda. Amanhã eu volto!”

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