Tem que saber pedir
Passado mais de dois meses, Alice está mais
adaptada ao cotidiano da quarentena. Já tem um novo horário para acordar, as
nove horas da manhã, e que sua tia Margarida não soubesse. Mesmo aposentada há
mais de trinta anos, continuava acordando antes do sol nascer e não via na
sobrinha disposição para tal. O que é uma verdade. Mas Alice não se importava, a
não ser nos dias em que Margarida liga cedo para ela, só pelo prazer de dizer: “poxa,
ainda estavas dormindo?! Eu hein!”.
Quase todos os dias Alice prepara o almoço. Quando
não quer comer o trivial arroz, feijão (que ela aprendeu a fazer na quarentena)
e bife, procura receitas na Internet. E descobriu uma página de uma chefe de
cozinha que ensina receitas em uma panela só. O que dificulta, às vezes, são as
receitas que levam endro, figo, alho-poró, que Alice não conhece e nunca comeu
e o aplicativo de supermercado também não. Daí então ela volta para o trivial
ou pede pelo delivery de comida. E quando recebe a fatura do cartão,
sempre se arrepende.
Para passar o tempo aos finais de semana, Alice
está curtindo as lives musicais. Começa na sexta à noite e atravessa o sábado
e domingo, o que já até virou um ritual. Faz uma busca no Google: “lives
de hoje” e pensa estar num barzinho ou em algum show, pois petiscos e cervejas
acompanham a cantoria, as mãos balançando para cima e até faz gravações de
vídeos cantando as músicas, que envia para as amigas, mesmo com a cara cheia de
espinhas. E quando acaba a bebida, pede no delivery. E o arrependimento
bate só depois, junto com a fatura.
Ao longo desse tempo, já conseguiu ler
mais livros comparado as leituras feitas no ano passado. E depois que descobriu
o aplicativo da Amazon (não julguem Alice, ela gosta do livro físico e
não se atentava para essas facilidades da vida pós-contemporânea) e os e-books
a 0,99 centavos, descobriu também mais uma forma de endividamento. Lê a hora que quer, as vezes adentra a madrugada. E agora que
inventou um novo ritual: ler na rede que atou no quarto, não quer guerra com
ninguém, como costumam dizer por aí, somente com o presidente e com o novo coronavírus,
que são dois graves problemas para o país, mas isso é assunto para outro momento.
Alice parece realmente bem adaptada e relaxada
quanto ao isolamento social. Porém, em um dia de preguiça de preparar o almoço,
Alice pediu uma yakissoba pelo delivery de comida. Não satisfeita
com o molho shoyu utilizado no preparo do prato, colocou mais ainda. Comeu satisfeita
e agradeceu a Deus. Nem mesmo saiu da mesa e começou a sentir uma forte pressão
na cabeça, algo que nunca havia sentido. Sua musculatura da nuca enrijeceu e
ficou um pouco catatônica e conseguiu pensar que talvez aquela fosse sua hora,
mas não queria: “Meu Deus, não me deixa morrer!” Meu Deus, não me deixa morrer!”
Meu Deus, não me deixa morrer!”.
Enquanto a morte se aproximava, Alice
pensava na vida; na live que o Caetano ainda não fez; no impeachment do
presidente; na descoberta da vacina contra o coronavírus; no fim do racismo;
nos e-books a 0,99 centavos; no balanço da rede; no vento no quintal;
nas sementes de plantas que nunca vingam; nas roupas novas que não usou; no
testamento que não fez; e lembrou que tem que saber pedir: “Meu Deus, não me
deixa morrer ou ficar alesada!”. “Meu Deus, não me deixa morrer ou ficar alesada!”.
“Meu Deus, não me deixa morrer ou ficar alesada!”.
Chegando ao hospital, a cena para a morte
estava montada: colocada em uma cadeira de rodas, quase desfalecida, pressão 15x10,
derrame iminente, coronavírus também, a médica fala: “Não vai ter derrame
nenhum, é só a pressão. Tome a receita, leve na enfermaria e verifique a
pressão daqui a uma hora. Já vai melhorar!”.
Alice soube pedir. Hoje ela almoçou salada.
Alice!! Que susto menina!!!
ResponderExcluirAlice já comeu o biscoito correto. 😃
ExcluirEssa Alice é muito sapeca, está crescendo nessa quarentena, até acordando cedo e cozinhando 😂😂
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