Como vivem os idiotas ou até quando?

Uma conversa entre uma criança de 5 anos hoje em dia e uma criança de 5 anos há cerca de uma década, por exemplo, não teria o mesmo grau de seriedade e comprometimento consigo mesmo e com o próximo que existe atualmente: “Benjamin, vamos fugir pra Mosqueiro?”, “Você quer ir pra praia?”, “Ai, meu filho, eu quero...”, “Mas não pode, Babi, tem o coronavírus!”. E a conversa se encerra, com uma pessoa adulta encurralada por uma criança de 5 anos.

É público e notório as mudanças na rotina causadas pela pandemia do coronavírus. Em maior ou menor grau, populações do mundo todo tiveram que encarar uma nova realidade que incluía ficar em isolamento social, estabelecer pouco ou nenhum contato físico e hábitos de higiene mais rigorosos, até mudanças na forma de consumo, com acesso a serviços de aplicativos de entrega de produtos dos mais variados, desde medicamentos, vestimenta até pão careca.

Mas também é sabido que esta nova realidade não foi acessível a todos, de um lado, pela necessidade de categorias profissionais prestarem serviços essenciais e não poderem fazer o isolamento social, por outro lado, pela própria desigualdade do mundo, que aprofundou ainda mais a distância entre ricos e pobres, com os mais pobres não tendo acesso nem a água para lavar as mãos. Mas de modo geral, todos foram afetados pela nova rotina, especialmente os idiotas.

Os idiotas são aqueles indivíduos que estão em casa há mais de um ano, variando o rigor do isolamento social para mais ou para menos, mas estão em casa. Em casa, perderam o controle do ritmo e tempo do trabalho em home office, ou seja, trabalham mais do que as horas recebidas, mas são tidos como “vagabundos” que não trabalham ou não querem voltar a trabalhar presencialmente. Se forem pais e mães (as mães mais do que os pais), ainda tem que cuidar dos filhos, participar de aulas online e ser criativas e inventivas, proporcionando brincadeiras para evitar o tédio. São aqueles que se jogaram nos aplicativos de entrega de alimentos e remédios, quiçá sustentem este tipo de economia, mesmo a taxa de entrega variando entre gratuita até vinte reais. São aqueles que fazem compras de roupas, livros, produtos de beleza, entre outros, pelo WhatsApp, pelo Instagram, por sites de venda online, quiçá sustentem estas economias. São aqueles que assistem as lives musicais, aos filmes nas plataformas de streaming (ou recorrem ao bom e velho torrent mesmo), participam de eventos acadêmicos e científicos pela Web, matriculam-se em cursos e mais cursos remotos, quiçá sustentem este tipo de economia. Enquanto fazem tudo isso ao mesmo tempo, veem a vida passar lá fora e ela segue muito difícil que fica até complicado para o idiota fazer o movimento de sair da caverna.

Mas os idiotas, vez ou outra, precisam sair de casa. Vocês já viram como um idiota faz isso?

Antes de sair de casa, o idiota revê toda sua vida passando pela sua cabeça, pensando que essa saída pode ser a última para ele ou para alguém próximo. Pensa na necessidade desta saída: será que eu preciso mesmo fazer meus exames de rotina com o cardiologista? Será que eu preciso mesmo ir ao supermercado comprar leite, pois a taxa de entrega do delivery já está em 18 reais? E quando essa saída envolve encontrar duas amigas numa pizzaria. Aí mesmo que a morte vem! Uma morte horrível que envolve usar copos, pratos e talheres que não são os seus, um cumprimento de soquinho com as mãos ou uma cotovelada ou mesmo um abraço sem jeito quebrando os protocolos de distanciamento. O tormento mental que um idiota sofre ao sair de casa, estando há muito tempo em isolamento numa rotina surreal que compreende, num mesmo ambiente, trabalho, afazeres domésticos e cuidados com filhos, é tamanho, provocando ansiedade em níveis muito altos. Mas isso nem se compara com quem, neste momento, está passando fome ou morrendo nos hospitais!

Mas a questão é que os idiotas continuam em casa. E uma pergunta simples é preciso ser feita: por que os idiotas continuam em casa? E qualquer idiota sabe que a escassez de vacina torna muito difícil a saída de muitos idiotas de casa. Benjamin pergunta: “Babi, já tem vacina? Tenho que tomar as duas ‘gulhas’?”, no que respondo: “Não, meu filho, essa vacina é pra outra doença” e seguimos bem idiotas em casa, sem vacina.

Mas este adjetivo que também é um substantivo de dois gêneros que pode significar tolo, ignorante, estúpido veio a calhar, afinal somos idiotas mesmo, suportando anos deste desgoverno federal que não cuida de sua população e recusa a compra de milhões de vacinas contra o coronavírus, somos idiotas por vermos “passar a boiada” diante de nossos olhos, somos idiotas quando gastamos nossa rede de internet para manter o serviço público funcionando remotamente, somos idiotas ao vermos os cortes nos investimentos em educação e saúde e protestamos nos grupos do aplicativo de mensagens, somos idiotas manifestando nosso descontentamento em redes sociais e não indo para as ruas, e talvez a escassez deliberada de vacinas sirva muito bem para manter os idiotas em casa, bem comedidos com o curso do país, como a idiota que vos escreve faz agora. 

Afinal, até quando aguentaremos (ser)ver um idiota (em)de casa?!

 


Comentários

  1. Perfeita em cada colocação, assim como o Benjamin também foi!

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  2. Perfeita em cada colocação, assim como o Benjamin!

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  3. Tua escrita me faz pensar, como sairemos dessa situação?

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  4. Também me vi em cada parágrafo. Me olho no espelho e falo me sinto uma idiota surtando em casa com morte em massa, fome, sofrimento e a carga mais pesada da impossibilidade do amanhã que o vírus trouxe enquanto sei lá 80% do meu Bairro, Brasil, presidente vivem forçando a normalidade que não existe, ainda mais quando a vacina foi negada, a morte virou piada de coveiro. Caímos em um limbo temporal desse desgoverno.Como sair eu me pergunto todo dia? Eu tô cansada de esperar 2022 para criar expectativas.

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  5. Engraçado ler isso em 2023. A pandemia parece ter sido há um século e a há uma semana, dependendo das angústias que revivemos. Continuamos, mas ainda em luto por quem não teve oportunidade de continuar.

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