Da série Memórias
As memórias de Alice
pululam de lembranças do chamado “Clube Lagoa Azul” ou “Clubinho”, como até
hoje é carinhosamente chamado. Formado por meninas e meninos, que logo se
tornariam moças e rapazes, moradores da Travessa 14 de Março entre Diogo Moia e
Oliveira Belo, eles ocuparam aquela rua como uma extensão das suas casas, ou
mesmo fazendo daquela rua a casa deles, pois se fosse fazer gosto, como mães e
pais costumam falar, manhãs, tardes e noites eram dedicadas às muitas
brincadeiras, pegadinhas, peças de teatro, produção de jornal, namoricos,
fofocas ou a simplesmente “ir pra porta”.
Alice não se lembra do
momento em que o clube se formou, mas pelo seu nome, sabe que ele surgiu
juntamente com a repercussão do filme “Lagoa Azul” em suas sucessivas reprises na "Sessão da Tarde", e também desconhece os motivos da atribuição do título do filme como
nome do Clubinho, mas o mesmo vigorou o tempo em que o Clube existiu, inclusive
saindo ileso de uma tentativa mal sucedida de escolha de um novo nome por meio
de um sorteio que foi logo anulado.
Das muitas brincadeiras
praticadas por seus membros, as clássicas eram “polícia e ladrão”,
“pira-cola-americana”, “cai no poço”, “pira-se-esconde”, “bandeirinha”, “cemitério”
e arriscar-se em pegadinhas reproduzidas do Programa “Topa Tudo por Dinheiro”
com o incansável pregador de peças Ivo Holanda, pois em uma destas eles tiveram
que arcar, como consequência, com a chuva de mangas podres arremessadas pelos
membros da gangue dos “bicicletistas”, indo se esconder na casa grande do
portão marrom, refúgio e sede do Lagoa Azul.
Esta casa também foi,
assim como a rua, a extensão das residências de alguns membros do Clube, a
exceção daqueles que moravam nela, claro. Ocupando diferentes espaços dentro
dela, desde a casinha da Dinorah, casa do cachorro, até o quarto da tia
Socorro, momento que se configurou como um marco na conquista de um espaço
digno para as atividades do clube, o pessoal do clubinho deixou marcas naquela
casa e não saiu sem elas de lá, literalmente falando. Enquanto uns quebraram
braços, outros quebraram as cabeças, variando com o nível das brincadeiras
nas quais se envolveram.
Ao ocuparem o quarto da
tia Socorro, puderam colocar em prática o lado cênico do clube, realizando neste
espaço seleção de atores, ensaios e as apresentações das peças “Irmãos
Endiabrados 1” e a não mesmo importante “Irmãos Endiabrados 2”, peças em cartaz
de reduzidíssima temporada, uma noite cada. As peças, como o nome sugere,
contavam a história de irmãos que eram endiabrados e que mostravam sua danação
por meio de clássicas cenas de arremesso de farinha, ovo, Coca-Cola, trigo,
talvez. E como não se deram por satisfeitos em fazer isto em “Irmãos
Endiabrados 1”, pensaram em repetir as cenas em “Irmãos Endiabrados 2”, ambas
sucesso de público familiar e de crítica, principalmente das funcionárias da
casa grande de portão marrom.
Outra das atividades
desenvolvidas pelo pessoal do Clubinho era a produção de um jornalzinho de
ampla circulação entre os seus membros, seus familiares, amigos e vizinhos. Nele
se publicava de tudo, desde críticas de filmes, entrevistas com surfistas até
as fotos da “gatinha do mês”, ou algo parecido com isso. Alice uma vez até escreveu
uma crônica sobre um filme que assistiu chamado “Uma equipe muito especial”,
que contava a história de um time de baseball
feminino seus problemas e dramas internos e de cada personagem e naquele
momento aquele esporte tornou-se uma espécie de encantamento para Alice. Mas
talvez tudo isto tenha sido influência da tarde alegre vivida por ela, afinal
depois de assistir ao filme, ela foi comer aqueles deliciosos sanduíches da “Boss”
e nunca jogou baseball.
As lembranças de Alice
sobre o Clube Lagoa Azul não tem uma sequência cronológica linear, as suas
memórias estão mais atreladas aos vários momentos de felicidade vividos por ela
junto aqueles amigos e amigas tão criativos, divertidos, amados e eternos. E como
o tempo vem, passa e tira tudo do lugar, um dia o Clube acabou, mas Alice não
lembra muito bem de seu fim, talvez ele tenha tido vários fins, cada vez que
uma mudança ocorria na vida de cada um dos seus membros e os levava para longe
ou bem longe da Travessa 14 de Março entre Diogo Moia e Oliveira Belo. E Alice
assistiu a todas estas mudanças.
Alice viu casas serem
vendidas; caminhões levarem móveis; seus amigos se mudarem para outros bairros, estados
e cidades; gravidez; crianças nascendo; crianças crescendo; a casa grande de
portão marrom virar clínica veterinária, bar, restaurante, ser demolida, virar
lava-jato e um terreno baldio; assaltos; casas serem demolidas para darem lugar
a um arranha-céu; comércios abrindo e fechando; um prédio branco ser construído
ao lado de sua casa; seus amigos formarem famílias; seus amigos voltando à rua
para visitar suas famílias que ficaram e partirem novamente. Alice viu tudo
isto enquanto ficou... até hoje. E, talvez, espreitando de alguma janela, alguém
veja Alice partir também.
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