Aquela noite

Desde aquela noite, após assistir ao “O Incrível Homem que Encolheu”, a relação entre elas ficou marcada de um modo muito peculiar, afinal ninguém sai ileso, aos dez anos de idade, após uma sessão de um filme sobre um homem que encolheu até virar um átomo, depois de passar por uma nuvem de radioatividade, ao realizar um passeio de barco. Alice não saiu ilesa, nem mesmo Sandra, do alto de seus quarenta e poucos anos de idade. Como Alice só pode dar conta de suas memórias, pois lidar com memória é algo complicado, ainda mais alheia, então aqui vão algumas lembranças suas daquela noite.
A TV era de 14 polegadas; o filme em preto e branco; e a sessão era como no cinema: no escuro. Se Alice não está enganada, já era madrugada, hora de criança estar na cama dormindo, mas ela estava acordada, pois era impossível dormir ao ver um gato perseguir um homem tão minúsculo e que a cada hora se tornava menor. Talvez Sandra não tenha obrigado Alice a ir para cama, pois aquele momento tinha algo de especial para ela.
Alice se lembra de sentir fome no meio da sessão, o que não é algo improvável dado o apetite dela, e talvez tenha comido salada de frutas em lata com sorvete sabor napolitano, pois esta é uma lembrança marcante em seu paladar. E tomar sorvete enquanto o homem que encolheu se torna menor que uma anã de circo de um dia para outro, era algo sarcasticamente divertido.
Enquanto o filme passava na televisão, ambas estavam deitadas no chão, somente um travesseiro sob as suas cabeças para proporcionar algum conforto, época também em que Sandra não sentia dores na coluna, pois Alice não recorda de nenhuma reclamação neste sentido, afinal aquela sessão tinha para elas algo de muito especial e algias de qualquer tipo não eram bem-vindas.
O filme terminou com uma tragédia prevista: o homem que encolheu desaparece da vista de sua esposa, após virar um átomo. Mas Alice ainda tinha esperança de que o final fosse diferente e de que a esposa pudesse encontrar o marido e colocá-lo de volta naquela casinha de boneca, mas o fim não foi como esperado por ela. Talvez tenha sofrido um sofrimento passageiro, pois ela sente certa angústia ao recordar do término do filme, mas não passou disso, um sofrimento passageiro.
Ao desligarem a TV, já altas horas da noite, foi uma para cada lado, quer dizer, cada uma para seus respectivos quartos que ficavam lado a lado, Alice pensando no incrível homem que encolheu, Sandra pensando sobre o que pensava Alice e o que aquela experiência havia causado a ela. “Será que deveria ter colocado para dormir?!”, perguntava retoricamente a si mesma.
Alice nunca se esqueceu daquela noite e muitas outras como aquela vieram, marcadas por sessões de filmes tão estranhos como aquele, enchendo a memória de Alice de afeto, cumplicidade e diversão; fome, sorvete, café com leite e pão; calor, carapanã e ventilador barulhento; dores na coluna, massagens na costa, coçadas de cabeça; pedidos e respostas negativas; pedidos insistentes e respostas positivas; choros, gargalhadas e sono. E elas, as noites, sempre terminavam assim: “Mãe, pega o controle, tô com sono; baixa o volume, vou dormir. Tchau, mãe, até amanhã!” Sandra nunca se arrependeu.

Esta é uma homenagem àquela que me cobriu em muitas noites; assistiu comigo ao “O incrível homem que encolheu”; assistiu a trilogia “O Senhor dos Anéis” cinco vezes cada filme, obrigada, é claro; assistiu aos jogos do Campeonato Brasileiro, Copa Sul-americana e Copa do Brasil  nas noites de quarta-feira, também obrigada, até se tornar fã de Maicosuel; e desliga a TV todas as noites quando eu dou tchau e viro para o lado para dormir.

Te amo, mãe!

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