Minha querida Clarice

Belém, 24 de janeiro de 2021

Minha querida Clarice,

A pandemia está aí, ela não arrefeceu! Ouço pessoas dizerem: “ah, quando eu estava em quarentena...”. Eu continuo em quarentena e uso máscara. Claro, já dei minhas escapulidas: um chopp naquele barzinho preferido, uma volta no shopping que mais pareceu correria, um almoço no japonês, um passeio pela beira do rio que deram a sensação de que estou no mundo ainda. Mas faltou uma praia. Ah, um mergulho em Mosqueiro... Sei que você não gostou muito de lá, tinha mosquitos e a luz apagava cedo para você ler. Mas eu gosto e acho que passaste pouco tempo lá. Porém o Benjamin me lembra a cada vontade minha de ir: “não pode ir pra praia, né Babi?! O coronavírus tá aí!”. E uma criança de 5 anos me traz de volta a realidade entediante. 

Reclamo como você, quando as cartas de suas filhinhas Tânia e Elisa demoravam a chegar quando estavas morando em Nápoles, porque estou em casa há cerca de onze meses, e antes eu podia fazer as coisas mais comuns do mundo, e o que parecia rotina, agora ganhou status de liberdade: ir ao trabalho, a padaria, ao supermercado, a farmácia, a casa da amiga, ao restaurante, ao cinema assistir qualquer droga, como você quando ia ao cinema em Nápoles, andar na rua... Mas também agradeço! Reconheço o privilégio de trabalhar em casa, de pedir delivery de farmácia, supermercado, de plantas e até do pão. Mas eu parei de comer pão careca.

Parei também de me exercitar, mas lembrei da hipertensão e voltei a me exercitar, parei de tentar cortar os cabelos, mas agora quero pintar de branco, parei de tentar não deixar a louça acumular na pia, agora lavo no dia seguinte, parei de evitar TV aos domingos e agora assisto Ding Dong, parei de arredar os móveis de lugar porque já mexi em todos e outros eu dei, parei de comprar plantas e achar que tenho talento para cuidar. Parei de achar que o ser humano vai melhorar e mudar o mundo para melhor, porquê tem gente furando a fila da vacina e as águas de Veneza não estão mais cristalinas. Tem mais dias ruins que bons na minha quarentena, mas eu aguardo minha vez na fila da vacina, numa mistura de um cansaço velho e uma esperança miúda. Receba um enorme abraço de sua

Babi.

P. S.: Me desculpe se encontrar alguma vírgula fora do lugar e mudar o sentido da frase. Mas coloquei alguns porquês nos lugares errados, para ser um erro bem perceptível pra você pensar que foi pela digitação. 


Comentários

  1. Uauuuuu, arraso de carta! Dona Clarice vai amar receber!

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    1. Espero que demore a receber e crie a mesma expectativa pela carta de suas filhinhas

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