Da minha janela

Há algum tempo Alice mudou-se para uma cidade maravilhosa, pois tudo na vida de nossa personagem tem relação com este adjetivo que deriva de um substantivo e que pode facilmente se transformar num verbo, dependendo da paisagem.
Alice mudou-se para levar adiante o plano de se tornar melhor, intelectualmente falando, e saiu de seu mundo esbravejando: “estou indo estudar”, respondendo as pessoas que duvidavam da firmeza dela diante das tentações maravilhosas do mundo moderno. Pensavam que Alice se perderia, logo ela que consegue estar dos dois lados de um espelho. Mas ela arrependeu-se, em alguma parte do caminho, de ter proferido aquelas palavras, pois segundo um amigo e também agora uma amiga lhe disseram: as palavras tem poder e nossa personagem teve que ler muito (leia com ênfase este encontro vocálico) nos últimos meses para atingir a pretensa intelectualidade.
O ritual da leitura teve um início bastante feliz: Alice sentava-se diante de uma mesa, decorada com um vaso de flores amarelas e fotos de familiares e amigos, uma câmera fotográfica, um calendário da seicho-no-ie e seu computador e lia obstinadamente durante horas do dia, ao longo de semanas. Esse ritual teve duração de um mês, quando depois desse tempo, Alice passou a jogar os livros em cima da mesa, bagunçando as fotos. A mesa já estava cheia de livros, cópias de livros, moedas, celular, capa de óculos, anotações e o calendário não saía mais do dia 15: “Ninguém prospera sem fazer esforço”. O ritual da leitura se tornou bastante difícil para nossa personagem e a solução estava diante dela, mas Alice não levantava a cabeça.
Numa tarde qualquer Alice fora surpreendida com uma luz alaranjada entrando pela janela que sempre esteve ali diante dela, – diante daquela mesa de leitura, já agora bastante bagunçada – mas não percebera, pois nunca levantava a cabeça. Alice pegou a câmera e fotografou aquele pôr-do-sol até o fim e, por alguns instantes, abandonou a leitura, a leitura enfadonha. E a cidade maravilhosa finalmente mostrava uma de suas tentações.
Alice tinha agora um novo ritual de leitura, que voltou a ser feliz: sentava-se diante daquela mesa, decorada (do jeito de Alice) com o vaso de flores amarelas e com as fotos dos familiares e amigos, livros, cópias de livros, moedas, celular, capa de óculos, anotações, canetas, lápis, pilhas, pasta, revistas, computador e a câmera fotográfica. O horário das leituras começava agora próximo ao pôr-do-sol e ia até altas horas da noite, sempre na expectativa de surpreender-se mais uma vez com aquela luz alaranjada entrando pela janela.
Alice voltou a ler obstinadamente; o calendário não saía mais agora do dia 26: “Para ter um destino feliz, depende de ação e renovação”; e agora ela levantava a cabeça constantemente na esperança de se maravilhar com a paisagem. E às vezes acontecia...














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