Pessoas Estranhas II

Alice era complexa. Pode-se dizer até, incoerente. Todo dia quando ia pra universidade tomava o caminho mais longo, esperava pelo ônibus mais demorado e consequentemente sempre chegava atrasada nas aulas. Em um irônico dia, resolveu mudar de rota, pois tinha prova da professora mais chata dentre todas as disciplinas. (Na verdade, o que ela achava que era chato, era que a professora era muito inteligente, dava muita matéria e esperava dos alunos reciprocidade, ou seja, chata.). Alice foi então pelo outro caminho: mais curto, o ônibus chegava rapidinho e fazia que ela chegasse na hora à aula. Ela só não entendia porque implicava tanto com aquela opção tão mais acessível.
Alice, além de complexa era facilmente impressionável. Há muito tempo atrás, haviam dito para ela que próximo a parada de ônibus acessível havia uma casa mal assombrada, e que as pessoas, quando estavam lá a espera do ônibus, eram surpreendidas com passos, assovios, uns diziam até que escutavam gargalhadas vindas da casa. Na cabeça de Alice, realmente, aquela não era uma boa opção, ainda mais na fase de “A Super Espírita” que ela estava vivendo. Vai que algum espírito quisesse se comunicar com ela, ou até mesmo incorporar. (Pensando bem, Alice não entendia nada de Espiritismo. Mas isso é assunto história para uma outra história). Porém, no dia da temida prova não teve jeito e Alice foi então para a não menos temida parada de ônibus.
Esperou em torno de dez minutos e então o ônibus logo apareceu no horizonte. Não se sabe ao certo se Alice estava realmente com medo da avaliação ou da parada, mas neste dia resolveu colocar em xeque todos os seus medos. Era um misto de Caça-Fantasmas e Freud. O ônibus se aproximou, subiu e pensou: não aconteceu nada de sobrenatural nessa casa, será que os espíritos só se manifestam a noite?! Era mais provável para Alice pensar na timidez dos espíritos do que na não existência deles naquela casa.
Pagou ao cobrador, rolou a borboleta e foi sentar lá atrás, saudosista coitada. Sentava atrás para lembrar-se dos tempos de adolescência, que precisava se autoafirmar, chamando a atenção de todo o restante dos passageiros, junto com suas amigas. Aproveitou as cadeiras vazias, quase ao final do ônibus, e sentou a janela. Abriu a pasta, tirou o texto e resolveu rele-lo antes da prova. Nem teve chance.
Na segunda parada, após Alice ter subido ao ônibus, um homem que estava sentado na cadeira bem em frente a sua, resolveu subitamente mudar de lugar e sentar-se ao lado dela, no corredor. Maldita hora que eu sentei aqui, pensou Alice, lá vem esse homem querer conversar. Mais uma vez ela provava sua ação magnética em relação às pessoas estranhas. Mas aquela não seria uma simples conversa.
E aí? – perguntou o homem. Mora por aqui? O que responder em uma situação como essa, pensou Alice, se eu acabei de pegar o ônibus no bairro do Umarizal, ia passar pelo bairro da Pedreira e descer no bairro do Marco, ia ter que ser uma dessas opções, pois ou eu estava indo pra casa, saindo de casa, ou...ah! Quer saber, não interessa! Moro po-po-por aí. - respondeu a personalidade gaga de Alice. Pois com estranhos, é melhor você ter gagueira do que agir ou falar de forma ríspida, você nunca sabe a reação deles. O homem então balançou a cabeça positivamente e disse: ah, legal! Ponto para Alice. E quando pensou que ali estava encerrado o mini diálogo, ele ganhou uma dimensão macro, com a famosa frase: sabe que é?! Alice então baixou a cabeça. Estava pronta para externar naquele dia seu lado Freud de ser.
Minha mulher tá me esperando em casa. - disse o homem. Oba! – pensou Alice, problemas de ordem sentimental são comigo mesma. Vivia aconselhando as amigas, ou melhor, ajudando-as a pensar racionalmente em seus relacionamentos amorosos. O que aquele homem tinha a dizer não devia ser nada do que ela não pudesse resolver. Ela tá muito enfezada, continuou o homem, porque fiquei de levar dinheiro pra casa hoje e até agora nada, mas eu não sei como ela quer que eu faça isso, se eu to desempregado. Puta que pariu, pensou Alice, esse porra vai me roubar! É agora! É agora! Quando o ônibus parar, ou não, vai puxar minha bolsa e sair correndo. Hoje não é meu dia, hoje não é meu dia! – ficava repetindo essas frases na sua cabeça, incessantemente. Ela ta grávida, sabe. – continuou o sujeito. O que? – disse Alice. Quem ta grávida? A essa altura da conversa já nem mais sabia nem do que se tratava, só pensava no momento em que aquele sujeito ia puxar sua bolsa. Minha mulher, pois não é disso que to falando! – respondeu aquele sujeito atrevido. E Alice, já não queria mais exercer pseudopsicologia nenhuma mais com aquele sujeito. Ela estava sobressaltada. E ia ficar mais.
Sabe que é, moça, é que ela tá grávida e quer dinheiro pra comprar coisas pro moleque. Agora eu sou moça é?! – pensou Alice. Ainda agora o senhor ia me assaltar e agora eu sou moça. Sabe, eu já tenho três filhos...Ah! Mas não é possível, esse homem quer dinheiro meu a todo custo, se ele não vai me assaltar, ele espera que eu haja benevolamente e de dinheiro a ele, mas nem pensar, to com dinheiro contado para as passagens e pro lanche, mas não dou mesmo! – pensou Alice. Mas o homem não queria dinheiro.
Sabe que é, moça, já tenho três filhos com esse é o quarto, e mesmo sem dinheiro e sem emprego, o bacuri vai ser bem-vindo. – disse o homem. Porque, sabe moça, eu tenho a seguinte ideia: quem tem um tem dois, quem tem dois tem três, quem tem três tem quatro, quem tem quatro tem cinco. E ao terminar essa Matemática ilógica, olhou maliciosamente para Alice. Puta que pariu, pensou Alice, esse porra quer ter o quinto comigo! Se ele não descer na próxima parada, eu desço, se ele não descer na próxima parada, eu desço, se ele não descer na próxima parada, eu desço. – Alice ficou repetindo, incessantemente, essa frase na sua cabeça, quase como um mantra, ou... um funk, pra ver se surtia algum efeito.
Quando o ônibus parou e alguns passageiros estavam descendo, o homem então levantou, subitamente, do mesmo modo que havia sentado. Pois é, moça, foi legal conversar contigo. Tchau! – falou o homem. Tcha-tcha-tchau. – respondeu a personalidade gaga de Alice. E quando os passageiros desceram e a porta do ônibus fechou, Alice sentiu seu sangue esvair-se e seu corpo escorregar pela cadeira.
Ao chegar à universidade, ainda um pouco atordoada, Alice encontrou um amigo que perguntou sobre a prova, se ela havia estudado e se podia ajudá-lo com uma colinha. Alice nem deu bola, já nem se lembrava mais da temida prova, do medo que sentia da professora chata, da casa mal assombrada, pois essas coisas e pessoas eram fichinha perto daquele homem estranho, povoador da Amazônia!

Comentários

  1. kkkk...
    bom...muito bom...kkk

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  2. imagina se eu fosse a Alice... tinha desmaiado do lado do homem, ou no mínimo corrido!!! ahahahahahahahah!!! Bjsssss

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  3. adivinha quem escreveu acima??? dica:olha a qtd de pontos de exclamação!!! ahahahahahahah!!! Bjssssss

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